A primeira reação foi olhar para trás, mas não deveria tê-lo feito. O barulho do caveirão passando a segunda marcha só não foi maior do que o som dos tiros que me chamaram atenção no princípio. O desespero não tomou conta por completo, pois naqueles meus 10 anos de vida, situações não faltaram pra me preparar para aquele tipo de momento.
Viver em São Gonçalo tem dessas coisas, cada estouro pode sim ser o fim da linha, o achar das balas salgadas.
No meio, entre homens de pés descalços e carros blindados com canos de 762 expostos, entrei debaixo do carro mais próximo, foi o que deu pra fazer. As balas voaram perto naquele dia, posso me lembrar das frases em que pronunciei em meio ao desespero, rezei pra deus:
- Pai nosso que está no céu, santificado seja vosso nome, vem a nós em vosso reino, seja feita a sua vontade, aqui na terra quanto no céu
Podemos dizer que naquela tarde quis muito acreditar em Deus, qualquer um, naquele momento em que fechei os olhos e só o cheiro da gasolina estava dentro de meu cérebro, quis muito mesmo conseguir ter algum tipo de fé em algo onisciente, onipotente, para acabar com todo o mal. Se bem que ali, naquele momento, para quem mesmo eu estava torcendo contra? não lembro.
Foram alguns minutos debaixo daquele carro, o sentimento de terror completo, não era maior que a raiva, que o nojo daquela situação.
Quando levantei, fui correndo para casa, senti ainda um medo profundo de menino, só queria ter certeza que a minha avó estava bem. Abri o portão, abracei-a firme, as lágrimas foram inevitáveis: aquele não foi o dia das balas salgadas me alcançarem.
São Gonçalo, 2023