Na época em que a péssima Panini Comics re-imprimiu ‘’Superman: Entre a Foice e o Martelo’’, sai correndo para arrumar uma edição para mim. A fama que a precede já existia e me causava certo sentimento dúbio: ao mesmo tempo que pensava sobre como ver um dos principais símbolos da cultura estadunidense com o símbolo máximo do proletariado internacional no peito era algo realmente peculiar, o medo da história se tratar basicamente de propaganda anti-comunista não me deixava ter grandes expectativas para essa que é uma das graphic novels mais polêmicas já criadas.
Não tem como avaliar esta HQ sem falar sobre símbolos e o Superman representa basicamente deus, os ideais burgueses e protestantes de ver a vida e o mundo. Um mundo que poderia ser salvo sempre por uma única pessoa, dotada de um talento ou habilidades especiais, que é benevolente e é capaz de levar ‘’justiça’’ a sociedade como um todo. Pode parecer distante para quem não aprofunda o olhar, mas esse personagem tem como único objetivo de fato se portar como um messias que anda entre os mortais, que não revela sua identidade e ‘’ganha a vida’’ como qualquer outra pessoa, mas que ao fim do dia se revela o salvador, o escolhido, por ser mais puro e trabalhador. O Superman tem sobre sua imagem a própria representação da justiça burguesa encarnada. Não existem pobres, nem ricos para o Superman, pois o que vale é a lei e a justiça!
Bom, é notório que todos os teóricos liberais bebem de uma visão basicamente idealista do mundo, não enxergam a luta de classes como o verdadeiro motor da História e sendo assim, sempre estarão fadados ao fracasso ao analisarem a sociedade em que vivemos. O Superman sobre esse ponto de vista é uma mentira não simplesmente por voar ou ser super forte, mas sim por representar um jeito de ver a vida e o mundo idealista e que não se sustenta na realidade, pois de fato o que mudança as coisas de modo mais profundo é a luta de classes e em última instância, a Revolução.
De todo modo, voltando a HQ, o que vemos em ‘’Superman: Entre a Foice e o Martelo’’ é completamente diferente deste Superman, Mark Millar fez um exercício interessante ao imaginar como seria se o Superman tivesse caído na URSS ao invés dos EUA e o que isso acarretaria. É interessante pensar que essa HQ foi escrita justamente em um momento que existia no mundo, alimentado pelo imperialismo ianque e pelo fim ‘’oficial’’ da URSS uma ideia de ‘’fim da história'’, um discurso que dizia que agora não existiriam mais revoluções proletárias, que daquele momento em diante as lutas seriam somente no campo burocrático das instituições burguesas. Esse momento possibilitou um certo afrouxamento muito momentâneo da propaganda anti-comunista, e foi na esteira disso, que Mark Milar constrói um Superman que não era um super-herói, mas sim um grande chefe comunista.
É uma loucura pensar como as coisas são colocadas de formas muito sutis dentro da trama, que apresenta o Superman em suas atribuições políticas e militares, acaba muitas vezes se esquecendo até mesmo dos poderes do mesmo. É incrível como o camarada Stálin é representado na história como ele de fato era, como um personagem extremamente importante na História e como um grande dirigente comunista que foi. As obras estadunidenses costumam o retratar uma imagem mentirosa como um crápula, psicopata ou de forma deturpada, mas nessa história ele é muito bem representado.
A trama é muito completa, pois consegue fazer links históricos e estabelece diálogos e debates muito importantes sobre a questão do imperialismo, fazendo metáforas e referências se utilizando de personagens do próprio universo DC que ali estavam sendo representados de outra maneira, de modo muito sério e real, servindo de pano de fundo para os questionamentos que acabavam sendo levantados.
Por tudo isso, a história consegue prender o leitor de uma maneira absolutamente empolgante e os plots que são trazidos em muitos momentos são muito surpreendentes. É muito interessante pensar que o desenvolvimento do Superman dentro da história, que caminha no sentido de seu avanço enquanto verdadeiro quadro do partido bolchevique, sua politização crescente conforme a história caminha é genial, principalmente pois Millar faz um exercício de imaginação (e constrói uma metáfora) sobre como seria a URSS se houvesse um quadro a altura do grande Stalin para continuar com a revolução de forma correta. É essa transformação do ícone que é o grande acerto desta HQ, a ideia de que a sociedade não precisa de super-homens, mas sim de pessoas dispostas e capazes de guiá-la para o caminho correto.
É claro que há elementos que podemos identificar como uma tentativa de criticar a luta revolucionária e a própria URSS, mas são colocadas de forma tão rápida e sutil que o impacto positivo se sobrepõe. Talvez (provavelmente) essa HQ foi o maior caso de erro em uma propaganda anticomunista em todos os tempos, erraram completamente a mão e é exatamente por isso que ela é fabulosa.
*a animação não tem nada a ver com a HQ