sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Sou de São Gonçalo

 Sou de São Gonçalo. Cresci andando descalço pela feira de Neves, jogando bola nas ruas de meio-fio alto do Boa Vista, me perdendo no caos de Alcântara e naquelas espaçadas quadras do Jardim Catarina. É uma loucura, aquelas ruas parecem realmente todas iguais e as calçadas, tão esburacadas, parecem mais autênticas. 


Sou de São Gonçalo. Sempre gostei da Praça da Trindade, pois até The Smiths tocava. Lá tinha rap, samba, funk, pagode e até gospel. A Lapa era em São Gonçalo, lá na Parada 40. Maldito Capitão Linguiça, acabou com aquele lugar. É incrível porque qualquer buraco depois de 0h em São Gonçalo vira point. O povo daqui sabe curtir. 


Sou de São Gonçalo. Teve até uma vez que peguei um ônibus que dizia para calar a boca e que me levou pra Maricá. Isso só não é mais peculiar, do que pensar, que em São Gonçalo também tem mar. Apesar dos apesares, a Praia das Pedrinhas está lá de pé, e é tão bonita que não merecia ter em suas pedras tanto esgoto. O que podemos dizer também da Praia da Luz, da Serra das Palmeiras, do vulcão? Aos meus olhos não existe lugar mais bonito, mas hoje em dia são quase como lenda urbana. O velho Estado é tão sádico, conseguiram criminalizar até mesmo a natureza, pois a pobreza já se tinha feito há tempos aqui. 


Sou de São Gonçalo. Sou marginal e não sou herói, sou como qualquer pessoa normal tentando sobreviver, viver em São Gonçalo é ser marginal. Não estamos à margem da Baía de Guanabara (mesmo que geograficamente estejamos), estamos à margem da urbanidade, do desenvolvimento, da dignidade. 


Sou de São Gonçalo. A violência é tônica diária, pois todo dia esse chão é encharcado de sangue. O barulho das balas assombram, tiram o sono, mas quando o sol ainda nem levantou, todos os dias, o terminal de Niterói já está lotado. Esse povo tão massacrado não se entrega. Quanto mais caveirão, mais luta. A raiva só tem aumentado, a rebelião é questão de tempo. 


Sou de São Gonçalo. Meu maior sonho não é ter um apartamento na Lopes Trovão, Icaraí fede. Meu sonho é viver em uma São Gonçalo diferente, sem mortes, sem favelas, sem pobreza, sem aqueles velhos buracos da Manoel Duarte. 


São Gonçalo, 2023


domingo, 17 de setembro de 2023

''Superman Entre a Foice e o Martelo'': A Propaganda Anti-Comunista Mais Burra da História

 Na época em que a péssima Panini Comics re-imprimiu ‘’Superman: Entre a Foice e o Martelo’’, sai correndo para arrumar uma edição para mim. A fama que a precede já existia e me causava certo sentimento dúbio: ao mesmo tempo que pensava sobre como ver um dos principais símbolos da cultura estadunidense com o símbolo máximo do proletariado internacional no peito era algo realmente peculiar, o medo da história se tratar basicamente de propaganda anti-comunista não me deixava ter grandes expectativas para essa que é uma das graphic novels mais polêmicas já criadas. 

Não tem como avaliar esta HQ sem falar sobre símbolos e o Superman representa basicamente deus, os ideais burgueses e protestantes de ver a vida e o mundo. Um mundo que poderia ser salvo sempre por uma única pessoa, dotada de um talento ou habilidades especiais, que é benevolente e é capaz de levar ‘’justiça’’ a sociedade como um todo. Pode parecer distante para quem não aprofunda o olhar, mas esse personagem tem como único objetivo de fato se portar como um messias que anda entre os mortais, que não revela sua identidade e ‘’ganha a vida’’ como qualquer outra pessoa, mas que ao fim do dia se revela o salvador, o escolhido, por ser mais puro e trabalhador. O Superman tem sobre sua imagem a própria representação da justiça burguesa encarnada. Não existem pobres, nem ricos para o Superman, pois o que vale é a lei e a justiça!


 

Bom, é notório que todos os teóricos liberais bebem de uma visão basicamente idealista do mundo, não enxergam a luta de classes como o verdadeiro motor da História e sendo assim, sempre estarão fadados ao fracasso ao analisarem a sociedade em que vivemos. O Superman sobre esse ponto de vista é uma mentira não simplesmente por voar ou ser super forte, mas sim por representar um jeito de ver a vida e o mundo idealista e que não se sustenta na realidade, pois de fato o que mudança as coisas de modo mais profundo é a luta de classes e em última instância, a Revolução. 

De todo modo, voltando a HQ, o que vemos em ‘’Superman: Entre a Foice e o Martelo’’ é completamente diferente deste Superman, Mark Millar fez um exercício interessante ao imaginar como seria se o Superman tivesse caído na URSS ao invés dos EUA e o que isso acarretaria. É interessante pensar que essa HQ foi escrita justamente em um momento que existia no mundo, alimentado pelo imperialismo ianque e pelo fim ‘’oficial’’ da URSS uma ideia de ‘’fim da história'’, um discurso que dizia que agora não existiriam mais revoluções proletárias, que daquele momento em diante as lutas seriam somente no campo burocrático das instituições burguesas. Esse momento possibilitou um certo afrouxamento muito momentâneo da propaganda anti-comunista, e foi na esteira disso, que Mark Milar constrói um Superman que não era um super-herói, mas sim um grande chefe comunista. 

É uma loucura pensar como as coisas são colocadas de formas muito sutis dentro da trama, que apresenta o Superman em suas atribuições políticas e militares, acaba muitas vezes se esquecendo até mesmo dos poderes do mesmo. É incrível como o camarada Stálin é representado na história como ele de fato era, como um personagem extremamente importante na História e como um grande dirigente comunista que foi. As obras estadunidenses costumam o retratar uma imagem mentirosa como um crápula, psicopata ou de forma deturpada, mas nessa história ele é muito bem representado.

A trama é muito completa, pois consegue fazer links históricos e estabelece diálogos e debates muito importantes sobre a questão do imperialismo, fazendo metáforas e referências se utilizando de personagens do próprio universo DC que ali estavam sendo representados de outra maneira, de modo muito sério e real, servindo de pano de fundo para os questionamentos que acabavam sendo levantados.

Por tudo isso, a história consegue prender o leitor de uma maneira absolutamente empolgante e os plots que são trazidos em muitos momentos são muito surpreendentes. É muito interessante pensar que o desenvolvimento do Superman dentro da história, que caminha no sentido de seu avanço enquanto verdadeiro quadro do partido bolchevique, sua politização crescente conforme a história caminha é genial, principalmente pois Millar faz um exercício de imaginação (e constrói uma metáfora) sobre como seria a URSS se houvesse um quadro a altura do grande Stalin para continuar com a revolução de forma correta. É essa transformação do ícone que é o grande acerto desta HQ, a ideia de que a sociedade não precisa de super-homens, mas sim de pessoas dispostas e capazes de guiá-la para o caminho correto.

É claro que há elementos que podemos identificar como uma tentativa de criticar a luta revolucionária e a própria URSS, mas são colocadas de forma tão rápida e sutil que o impacto positivo se sobrepõe. Talvez (provavelmente) essa HQ foi o maior caso de erro em uma propaganda anticomunista em todos os tempos, erraram completamente a mão e é exatamente por isso que ela é fabulosa. 

*a animação não tem nada a ver com a HQ


domingo, 10 de setembro de 2023

Sandman e o Mundo Real do Sonhar

 Lembro como se fosse hoje o dia em que vi pela primeira vez uma edição de Sandman, foi no dia em que iniciei minha jornada no mundo das HQs. Tinha uma capa com um pássaro marron em um fundo escuro, me chamou a curiosidade e quando li o enunciado pensei ‘’isso é realmente algo que eu leria’’. É claro que os R$200 reais do preço de capa e as outras 4 edições eram uma barreira intransponível naquela época. Esse mês fazem 10 anos desse dia e desde aquela época foi sempre um verdadeiro objetivo conseguir ler essa obra transcendental, que só pela mítica já me atraiu, mesmo nunca tendo nem lido nada na minha vida aquela altura de meus 13 anos. Essa introdução pode ser que entregue um pouco, mas a minha reação ao anúncio do relançamento de Sandman pela Panini em um formato trimestral a um preço acessível, em razão do aniversário de 30 anos da saga, foi simplesmente indescritível. 

É sempre bom ressaltar que a fama da obra prima de Neil Gaiman, lançada entre 1989 e 1996, às vezes pode provocar nas pessoas antes de lerem um sentimento de que há na trama grandes reviravoltas ou uma história absolutamente mirabolante, porém não, Sandman não é sobre isso. A história de Sandman é definitivamente um pano de fundo para todas as metáforas presentes na história, para as reflexões profundas que estão inseridas em seus quadros, para diálogos simples que se integram e constroem todo um ideário, uma constelação do que é o Sonhar e Sandman. 

Os capítulos apesar de construírem passo a passo a mitologia e o desenvolvimento da jornada de Morpheus, possuem vida própria e buscam sempre ter um início, meio e fim próprios, sendo vários destes muito destacados, como temos ‘’Um Jogo de Você’’, ‘’Estação das Brumas’’, ‘’Entes Queridos’’ e tantos outros são parábolas maravilhosas de nossos sonhos mais íntimos, de como queríamos que a vida fosse diferente ou como as pessoas lutam para materializar seus sonhos no mundo real, mesmo que muitas vezes não sendo possível transformar em real de forma cabal. Nos provoca a refletir sobre nossa relação com as pessoas próximas a nós e também a nós mesmos, a pensar em como estamos vivendo e se mesmo estamos vivendo. O mais incrível é como Gaiman consegue transformar aspectos absolutamente míticos ou fantasiosos como fadas, deuses e até mesmo a personificação da morte em elementos muito palpáveis de nosso cotidiano. 



Os personagens que são apresentados ao longo da saga são absolutamente bem trabalhados e possuem características, histórias, contextos e profundidades muito bem desenvolvidas. É claro que Morpheus é o grande protagonista e todas essas dinâmicas e reflexões são de certa forma ligadas a ele (por motivo bem óbvio, ele é literalmente o sonho, a encarnação de todos os nossos anseios e desejos e também o elemento central da construção de Sandman), porém diversos personagens se estabelecem de forma tão preponderante, que "roubam a cena". Morte por exemplo: irmã do Sonho, a que deveria ser a executora, rodeada de amargura e dor, é quem em diversos momentos representa o renascimento, a vontade de continuar a luta e a encorajar seu irmão a não ser tão derrotista. É quem exala vida, mesmo sendo a fim. Morte é apresentada como a ponte entre a vida e os sonhos, a chama que mantém acesa a vida mesmo sendo sua nêmesis. Os demais personagens derivam todos de metáforas, possuem visão e características muito próprias das mitologias que representam. Como Delírio, que representa um olhar de criança do mundo e que em muitos momentos é uma das personagens mais lúcidas de toda a história, ou como Lúcifer, o estrela da manhã que se cansou das velhas tradições e do seu velho mundo e decidiu deixá-lo para trás, começar uma nova vida em um novo mundo, além de tantos outros personagens que buscavam de alguma forma encontrar sua felicidade em seus sonhos e batalhavam contra a realidade para alcançar. 

Não pretendo aqui entrar em capítulo por capítulo, mas a forma como é construída a história nos conduz a entender Sandman como uma saga de atos distintos, que provoca o leitor a realmente ver do ponto de vista do sonhar o dia a dia de nossas vidas, para entendermos o quanto nossos sonhos são ligados com a capacidade de imaginarmos um mundo melhor, diferente, um mundo onde podemos vivermos sem todos esses pesos desta sociedade doente que vivemos. Em Sandman está presente os motivos do quanto é difícil sonhar, do quanto é difícil enfrentar essa sociedade sem perdermos os nossos sonhos. 




A arte incrível também precisa ser ressaltada, combina exatamente com tudo que Gaiman busca passar em sua obra, essa irreverência e magnificência do sonhar e dos perpétuos. Sandman é fabuloso, magnífico, uma reflexão profunda sobre nossos sonhos e a vida real.