domingo, 16 de julho de 2023

Deus me Livre não Ser do Brasil

 Me perdoe Lima Barreto, pois tenho meus momentos de ufanismo. Tem dias que embalo-me pelos sorrisos no ritmo do samba e da luta, quando percebo, já estou sentindo uma satisfação genuína de pertencer ao povo brasileiro. Eu nasci no Rio de Janeiro e nunca fui ao Cristo Redentor, nunca vi de perto os lençóis maranhenses ou naveguei pelo Pantanal Matogrossense. A Amazônia é distante, assim como os Pampas e mesmo São Paulo, parece longe demais. Não conheço o meu país, somente o nosso povo, pois o Brasil do tupi, o vermelho como brasa, é comum a todos nós. 

É uma loucura tão grande pensar na extensão absurda que se estende o nosso país, um verdadeiro mundo de variedades, culturas, histórias, que se encontram em algo comum: a luta.  Apesar das falácias e mentiras repetidas tantas vezes, aqui nessa terra de norte a sul, se resiste desde de tempos que lá se vão. Desde as primeiras lutas de resistência indígena contra a invasão portuguesa, até às incontáveis revoltas camponesas durante a história desse país e as lutas contra a ditadura militar e esse velho Estado que tanto insiste em tentar nos massacrar.

Eles nunca irão conseguir. O nosso povo nunca vai desistir da luta. 

Olhei em volta, em um dia tão trabalhoso quanto hoje, acabei me embalando pelos sorrisos, me contagiei pelas histórias, pela voracidade, pela luta de pessoas que nunca abaixam a cabeça e desculpe-me Lima, pensei: "Deus me livre não ser do Brasil". 

Rio de Janeiro, 2023



segunda-feira, 10 de julho de 2023

Sobre o ''Junho Febril'' de Igor Mendes

 A literatura é muito mais sobre pessoas do que frases bonitas e estrofes gramaticalmente perfeitas. O mais magnífico em autores como Graciliano e Lima Barreto, é o jeito ímpar de retratar o nosso povo, nas mais diferentes formas que esses se apresentam. Como os cariocas do início do século XX, presentes na escrita marginal de Lima Barreto ou as mulheres e homens do campo de Graciliano, retratados em São Bernardo. Eles os retratavam tão bem, que ler um desses livros é como se teletransportar para outro tempo, para outros lugares. Entendendo as origens dos personagens, suas angústias, ambições e lamúrias, suas lutas e revoltas, podemos até nos sentir amigos, irmãos ou eles próprios. 



É exatamente essa a sensação que ‘’Junho Febril’’, de Igor Mendes, nos proporciona a cada página. 

Podemos dizer que os três personagens principais são como espectros de toda a revolta contida na juventude de nosso tempo, são representações fiéis de uma geração que não aceita mais ver os seus chicoteados, que foram e estão sendo ainda hoje, conduzidos a uma decisão que só leva a dois caminhos: o da luta ou da negação completa da realidade concreta. Nesse contexto, as grandes jornadas de junho de 2013 (que se estenderam até 2014) foram o momento de quebra de paradigma, do fim das ilusões e podemos sentir isso claramente lendo o livro. Tanto Navalha, quanto Flávia e Apê em suas infinitas diferenças, foram empurrados para aquele grito uníssono de um povo em completa rebelião contra seus senhores.

Chama atenção como o livro consegue desenvolver tão profundamente os seus personagens. A escrita na primeira pessoa cumpre o papel de nos colocar no chão das tramas, para sentirmos as dores, prazeres, dissabores e até mesmo raiva e reprovação sobre as atitudes dos personagens. A todo momento as dúvidas e inseguranças dos personagens são expostas durante a trama, que vai caminhando exatamente por entre tais elementos. É uma dinâmica absolutamente gostosa de ler e perceber.

Falar sobre os três protagonistas nessa resenha é quase que obrigatório. Dos três, Apê, é o que mais me provocou a refletir. Não porque me identifiquei com sua personalidade ou então sua história de vida, mas porque é um retrato que o livro faz de uma pessoa que tinha tudo pra continuar em seu mundo, do lado certo do túnel e nunca se importar com o lado errado, mas que em um momento de ebulição, foi empurrado para ver o mundo real e não virou as costas. Mesmo com suas contradições, foi-se modificando e percebendo que precisava mudar, se movimentar, se organizar. As leis das quais era tão crente, o tal Estado democrático de direito, não era mais do que um conto de fadas contado pelos engomados da "nacional de direito". Apê só consegue de fato perceber tudo isso, no momento em que o caveirão se pôs na Pres. Vargas. Aquele fato, é o que precisava para sua ficha cair e acredito que para muitos naqueles ido de junho também. Sua jornada é algo irritante, angustiante e fantástico de se acompanhar. 

Já Ventania, bom, ela é da América do Sul. Cowboy, do ouro, do mundo, de Vassouras. Flávia é uma jovem que não se rende, que mesmo passando por diversas dificuldades e até mesmo com a maternidade prematura, nunca virou as costas para seus sonhos, sua arte. Ela expressa uma juventude que se recusa a ser sepultada em sua essência, que não aceita de modo algum ser podada. Não importam as consequências, não será o redemoinho que se curvará às árvores, mas o contrário. A cena em que ela encara os PMs sozinha dotada apenas de um violão é empolgante, assim como toda sua luta por ser respeitada como artista e também para sobreviver no Rio de Janeiro. Foi incrível perceber como os protestos mostraram a ela que ela não precisava lutar sozinha, pois não estava, que existia todo um povo junto a ela nessa mesma batalha diária, que não era uma imprestável por ter 24 anos, não possuir um emprego e um filho para criar solteira. Magnífico!

Navalha é de fato o grande protagonista de Junho Febril. É difícil não colocar dessa forma logo na primeira linha do parágrafo, pois o ódio de Roberto Carlos é um ódio genuíno, um ódio profundo, um ódio que não é só dele, mas sim, um ódio profundo e secular, um ódio indescritivelmente justo. É impossível para qualquer pessoa que tenha crescido nas esquinas do subúrbio carioca, da baixada, da velha São Gonçalo, de toda periferia do Brasil, não se identificar com esse personagem. Todo seu desenvolvimento mostra o que de fato foram os protestos de 2013, um grande mar de pessoas com ódio a um sistema, aos porcos fascistas fardados, de togas e gravatas, que em algum momento perceberam que podiam rebelar-se, que rebelar-se é justo. Nesse contexto, as jornadas de Junho de 2013 foram o estopim para Navalha descobrir que é possível revidar, que há um caminho, que a "firma" não é o único jeito de marchar contra os porcos e tampouco que são eles os únicos alvos.

 A história de Navalha não é a história só dele, é a história de sua mãe, do seu irmão, do seu amigo Golpe. Essa história se confunde com a história do meu vizinho, de João Pedro, de Ágata, de Amarildo, de Flávia. Pessoas, com nomes e histórias, que desde o seu primeiro minuto de vida nasceram com um grande X vermelho em suas costas, por serem pobres, pretos, favelados. Pessoas que lutam, lutaram e vão lutar toda a vida contra todo um sistema que tenta de todas as formas amansá-las, matá-las. 

E é esse o grande acerto de Junho Febril, é um livro de muitas histórias que nos levam a tantas outras histórias e no final, a trama principal nem é o mais importante. É fantástico um evento tão importante para o país, como foram as jornadas de Junho de 2013, poder ser trazido para literatura através de uma obra tão fantástica e que consegue tocar em tantos aspectos do que representou aqueles protestos para a sociedade brasileira e principalmente para a juventude, das mais variadas origens. Uma grande obra.