sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Sobre uma Criminosa

 Nem sempre é possível escrever uma crônica suave, pois nem sempre a vida é uma música do Frank Sinatra. Mas hoje olhei disfarçado para aquele furacão e só o que consegui sentir foi um friozinho profundo na espinha. Era como se eu pudesse escutar ao fundo “I’ve got a crush on you” tocando enquanto eu a admirava com aquele belo vestido preto. Os últimos tempos não têm sido fáceis, mas às vezes me pego um pouco distraído e quando percebo já estou com a cabeça distante, lá naqueles dias. Não sei o que acontece, é só um impulso que acomete minhas entranhas e me faz pensar coisas, imaginar coisas, lembrar de coisas. Sério, acho um absurdo uma pessoa ser tão bonita assim, de verdade, deveria ser crime. (Um em que eu definitivamente teria que ser o juiz, júri e executor).

Tem dias que eu queria conseguir dizer as coisas de forma mais clara, tem dias que meu maior sonho era ser um homem que não escreve uma crônica sobre a profunda complexidade de estar querendo muito beijar a boca de uma alguém específica. 

A perversão é condenada socialmente, a idealização ainda mais, e não tenho mais saída. Só nos resta o bom e velho cotidiano dramático. 

- São Gonçalo, 2023

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Sou de São Gonçalo

 Sou de São Gonçalo. Cresci andando descalço pela feira de Neves, jogando bola nas ruas de meio-fio alto do Boa Vista, me perdendo no caos de Alcântara e naquelas espaçadas quadras do Jardim Catarina. É uma loucura, aquelas ruas parecem realmente todas iguais e as calçadas, tão esburacadas, parecem mais autênticas. 


Sou de São Gonçalo. Sempre gostei da Praça da Trindade, pois até The Smiths tocava. Lá tinha rap, samba, funk, pagode e até gospel. A Lapa era em São Gonçalo, lá na Parada 40. Maldito Capitão Linguiça, acabou com aquele lugar. É incrível porque qualquer buraco depois de 0h em São Gonçalo vira point. O povo daqui sabe curtir. 


Sou de São Gonçalo. Teve até uma vez que peguei um ônibus que dizia para calar a boca e que me levou pra Maricá. Isso só não é mais peculiar, do que pensar, que em São Gonçalo também tem mar. Apesar dos apesares, a Praia das Pedrinhas está lá de pé, e é tão bonita que não merecia ter em suas pedras tanto esgoto. O que podemos dizer também da Praia da Luz, da Serra das Palmeiras, do vulcão? Aos meus olhos não existe lugar mais bonito, mas hoje em dia são quase como lenda urbana. O velho Estado é tão sádico, conseguiram criminalizar até mesmo a natureza, pois a pobreza já se tinha feito há tempos aqui. 


Sou de São Gonçalo. Sou marginal e não sou herói, sou como qualquer pessoa normal tentando sobreviver, viver em São Gonçalo é ser marginal. Não estamos à margem da Baía de Guanabara (mesmo que geograficamente estejamos), estamos à margem da urbanidade, do desenvolvimento, da dignidade. 


Sou de São Gonçalo. A violência é tônica diária, pois todo dia esse chão é encharcado de sangue. O barulho das balas assombram, tiram o sono, mas quando o sol ainda nem levantou, todos os dias, o terminal de Niterói já está lotado. Esse povo tão massacrado não se entrega. Quanto mais caveirão, mais luta. A raiva só tem aumentado, a rebelião é questão de tempo. 


Sou de São Gonçalo. Meu maior sonho não é ter um apartamento na Lopes Trovão, Icaraí fede. Meu sonho é viver em uma São Gonçalo diferente, sem mortes, sem favelas, sem pobreza, sem aqueles velhos buracos da Manoel Duarte. 


São Gonçalo, 2023


domingo, 17 de setembro de 2023

''Superman Entre a Foice e o Martelo'': A Propaganda Anti-Comunista Mais Burra da História

 Na época em que a péssima Panini Comics re-imprimiu ‘’Superman: Entre a Foice e o Martelo’’, sai correndo para arrumar uma edição para mim. A fama que a precede já existia e me causava certo sentimento dúbio: ao mesmo tempo que pensava sobre como ver um dos principais símbolos da cultura estadunidense com o símbolo máximo do proletariado internacional no peito era algo realmente peculiar, o medo da história se tratar basicamente de propaganda anti-comunista não me deixava ter grandes expectativas para essa que é uma das graphic novels mais polêmicas já criadas. 

Não tem como avaliar esta HQ sem falar sobre símbolos e o Superman representa basicamente deus, os ideais burgueses e protestantes de ver a vida e o mundo. Um mundo que poderia ser salvo sempre por uma única pessoa, dotada de um talento ou habilidades especiais, que é benevolente e é capaz de levar ‘’justiça’’ a sociedade como um todo. Pode parecer distante para quem não aprofunda o olhar, mas esse personagem tem como único objetivo de fato se portar como um messias que anda entre os mortais, que não revela sua identidade e ‘’ganha a vida’’ como qualquer outra pessoa, mas que ao fim do dia se revela o salvador, o escolhido, por ser mais puro e trabalhador. O Superman tem sobre sua imagem a própria representação da justiça burguesa encarnada. Não existem pobres, nem ricos para o Superman, pois o que vale é a lei e a justiça!


 

Bom, é notório que todos os teóricos liberais bebem de uma visão basicamente idealista do mundo, não enxergam a luta de classes como o verdadeiro motor da História e sendo assim, sempre estarão fadados ao fracasso ao analisarem a sociedade em que vivemos. O Superman sobre esse ponto de vista é uma mentira não simplesmente por voar ou ser super forte, mas sim por representar um jeito de ver a vida e o mundo idealista e que não se sustenta na realidade, pois de fato o que mudança as coisas de modo mais profundo é a luta de classes e em última instância, a Revolução. 

De todo modo, voltando a HQ, o que vemos em ‘’Superman: Entre a Foice e o Martelo’’ é completamente diferente deste Superman, Mark Millar fez um exercício interessante ao imaginar como seria se o Superman tivesse caído na URSS ao invés dos EUA e o que isso acarretaria. É interessante pensar que essa HQ foi escrita justamente em um momento que existia no mundo, alimentado pelo imperialismo ianque e pelo fim ‘’oficial’’ da URSS uma ideia de ‘’fim da história'’, um discurso que dizia que agora não existiriam mais revoluções proletárias, que daquele momento em diante as lutas seriam somente no campo burocrático das instituições burguesas. Esse momento possibilitou um certo afrouxamento muito momentâneo da propaganda anti-comunista, e foi na esteira disso, que Mark Milar constrói um Superman que não era um super-herói, mas sim um grande chefe comunista. 

É uma loucura pensar como as coisas são colocadas de formas muito sutis dentro da trama, que apresenta o Superman em suas atribuições políticas e militares, acaba muitas vezes se esquecendo até mesmo dos poderes do mesmo. É incrível como o camarada Stálin é representado na história como ele de fato era, como um personagem extremamente importante na História e como um grande dirigente comunista que foi. As obras estadunidenses costumam o retratar uma imagem mentirosa como um crápula, psicopata ou de forma deturpada, mas nessa história ele é muito bem representado.

A trama é muito completa, pois consegue fazer links históricos e estabelece diálogos e debates muito importantes sobre a questão do imperialismo, fazendo metáforas e referências se utilizando de personagens do próprio universo DC que ali estavam sendo representados de outra maneira, de modo muito sério e real, servindo de pano de fundo para os questionamentos que acabavam sendo levantados.

Por tudo isso, a história consegue prender o leitor de uma maneira absolutamente empolgante e os plots que são trazidos em muitos momentos são muito surpreendentes. É muito interessante pensar que o desenvolvimento do Superman dentro da história, que caminha no sentido de seu avanço enquanto verdadeiro quadro do partido bolchevique, sua politização crescente conforme a história caminha é genial, principalmente pois Millar faz um exercício de imaginação (e constrói uma metáfora) sobre como seria a URSS se houvesse um quadro a altura do grande Stalin para continuar com a revolução de forma correta. É essa transformação do ícone que é o grande acerto desta HQ, a ideia de que a sociedade não precisa de super-homens, mas sim de pessoas dispostas e capazes de guiá-la para o caminho correto.

É claro que há elementos que podemos identificar como uma tentativa de criticar a luta revolucionária e a própria URSS, mas são colocadas de forma tão rápida e sutil que o impacto positivo se sobrepõe. Talvez (provavelmente) essa HQ foi o maior caso de erro em uma propaganda anticomunista em todos os tempos, erraram completamente a mão e é exatamente por isso que ela é fabulosa. 

*a animação não tem nada a ver com a HQ


domingo, 10 de setembro de 2023

Sandman e o Mundo Real do Sonhar

 Lembro como se fosse hoje o dia em que vi pela primeira vez uma edição de Sandman, foi no dia em que iniciei minha jornada no mundo das HQs. Tinha uma capa com um pássaro marron em um fundo escuro, me chamou a curiosidade e quando li o enunciado pensei ‘’isso é realmente algo que eu leria’’. É claro que os R$200 reais do preço de capa e as outras 4 edições eram uma barreira intransponível naquela época. Esse mês fazem 10 anos desse dia e desde aquela época foi sempre um verdadeiro objetivo conseguir ler essa obra transcendental, que só pela mítica já me atraiu, mesmo nunca tendo nem lido nada na minha vida aquela altura de meus 13 anos. Essa introdução pode ser que entregue um pouco, mas a minha reação ao anúncio do relançamento de Sandman pela Panini em um formato trimestral a um preço acessível, em razão do aniversário de 30 anos da saga, foi simplesmente indescritível. 

É sempre bom ressaltar que a fama da obra prima de Neil Gaiman, lançada entre 1989 e 1996, às vezes pode provocar nas pessoas antes de lerem um sentimento de que há na trama grandes reviravoltas ou uma história absolutamente mirabolante, porém não, Sandman não é sobre isso. A história de Sandman é definitivamente um pano de fundo para todas as metáforas presentes na história, para as reflexões profundas que estão inseridas em seus quadros, para diálogos simples que se integram e constroem todo um ideário, uma constelação do que é o Sonhar e Sandman. 

Os capítulos apesar de construírem passo a passo a mitologia e o desenvolvimento da jornada de Morpheus, possuem vida própria e buscam sempre ter um início, meio e fim próprios, sendo vários destes muito destacados, como temos ‘’Um Jogo de Você’’, ‘’Estação das Brumas’’, ‘’Entes Queridos’’ e tantos outros são parábolas maravilhosas de nossos sonhos mais íntimos, de como queríamos que a vida fosse diferente ou como as pessoas lutam para materializar seus sonhos no mundo real, mesmo que muitas vezes não sendo possível transformar em real de forma cabal. Nos provoca a refletir sobre nossa relação com as pessoas próximas a nós e também a nós mesmos, a pensar em como estamos vivendo e se mesmo estamos vivendo. O mais incrível é como Gaiman consegue transformar aspectos absolutamente míticos ou fantasiosos como fadas, deuses e até mesmo a personificação da morte em elementos muito palpáveis de nosso cotidiano. 



Os personagens que são apresentados ao longo da saga são absolutamente bem trabalhados e possuem características, histórias, contextos e profundidades muito bem desenvolvidas. É claro que Morpheus é o grande protagonista e todas essas dinâmicas e reflexões são de certa forma ligadas a ele (por motivo bem óbvio, ele é literalmente o sonho, a encarnação de todos os nossos anseios e desejos e também o elemento central da construção de Sandman), porém diversos personagens se estabelecem de forma tão preponderante, que "roubam a cena". Morte por exemplo: irmã do Sonho, a que deveria ser a executora, rodeada de amargura e dor, é quem em diversos momentos representa o renascimento, a vontade de continuar a luta e a encorajar seu irmão a não ser tão derrotista. É quem exala vida, mesmo sendo a fim. Morte é apresentada como a ponte entre a vida e os sonhos, a chama que mantém acesa a vida mesmo sendo sua nêmesis. Os demais personagens derivam todos de metáforas, possuem visão e características muito próprias das mitologias que representam. Como Delírio, que representa um olhar de criança do mundo e que em muitos momentos é uma das personagens mais lúcidas de toda a história, ou como Lúcifer, o estrela da manhã que se cansou das velhas tradições e do seu velho mundo e decidiu deixá-lo para trás, começar uma nova vida em um novo mundo, além de tantos outros personagens que buscavam de alguma forma encontrar sua felicidade em seus sonhos e batalhavam contra a realidade para alcançar. 

Não pretendo aqui entrar em capítulo por capítulo, mas a forma como é construída a história nos conduz a entender Sandman como uma saga de atos distintos, que provoca o leitor a realmente ver do ponto de vista do sonhar o dia a dia de nossas vidas, para entendermos o quanto nossos sonhos são ligados com a capacidade de imaginarmos um mundo melhor, diferente, um mundo onde podemos vivermos sem todos esses pesos desta sociedade doente que vivemos. Em Sandman está presente os motivos do quanto é difícil sonhar, do quanto é difícil enfrentar essa sociedade sem perdermos os nossos sonhos. 




A arte incrível também precisa ser ressaltada, combina exatamente com tudo que Gaiman busca passar em sua obra, essa irreverência e magnificência do sonhar e dos perpétuos. Sandman é fabuloso, magnífico, uma reflexão profunda sobre nossos sonhos e a vida real. 



domingo, 16 de julho de 2023

Deus me Livre não Ser do Brasil

 Me perdoe Lima Barreto, pois tenho meus momentos de ufanismo. Tem dias que embalo-me pelos sorrisos no ritmo do samba e da luta, quando percebo, já estou sentindo uma satisfação genuína de pertencer ao povo brasileiro. Eu nasci no Rio de Janeiro e nunca fui ao Cristo Redentor, nunca vi de perto os lençóis maranhenses ou naveguei pelo Pantanal Matogrossense. A Amazônia é distante, assim como os Pampas e mesmo São Paulo, parece longe demais. Não conheço o meu país, somente o nosso povo, pois o Brasil do tupi, o vermelho como brasa, é comum a todos nós. 

É uma loucura tão grande pensar na extensão absurda que se estende o nosso país, um verdadeiro mundo de variedades, culturas, histórias, que se encontram em algo comum: a luta.  Apesar das falácias e mentiras repetidas tantas vezes, aqui nessa terra de norte a sul, se resiste desde de tempos que lá se vão. Desde as primeiras lutas de resistência indígena contra a invasão portuguesa, até às incontáveis revoltas camponesas durante a história desse país e as lutas contra a ditadura militar e esse velho Estado que tanto insiste em tentar nos massacrar.

Eles nunca irão conseguir. O nosso povo nunca vai desistir da luta. 

Olhei em volta, em um dia tão trabalhoso quanto hoje, acabei me embalando pelos sorrisos, me contagiei pelas histórias, pela voracidade, pela luta de pessoas que nunca abaixam a cabeça e desculpe-me Lima, pensei: "Deus me livre não ser do Brasil". 

Rio de Janeiro, 2023



segunda-feira, 10 de julho de 2023

Sobre o ''Junho Febril'' de Igor Mendes

 A literatura é muito mais sobre pessoas do que frases bonitas e estrofes gramaticalmente perfeitas. O mais magnífico em autores como Graciliano e Lima Barreto, é o jeito ímpar de retratar o nosso povo, nas mais diferentes formas que esses se apresentam. Como os cariocas do início do século XX, presentes na escrita marginal de Lima Barreto ou as mulheres e homens do campo de Graciliano, retratados em São Bernardo. Eles os retratavam tão bem, que ler um desses livros é como se teletransportar para outro tempo, para outros lugares. Entendendo as origens dos personagens, suas angústias, ambições e lamúrias, suas lutas e revoltas, podemos até nos sentir amigos, irmãos ou eles próprios. 



É exatamente essa a sensação que ‘’Junho Febril’’, de Igor Mendes, nos proporciona a cada página. 

Podemos dizer que os três personagens principais são como espectros de toda a revolta contida na juventude de nosso tempo, são representações fiéis de uma geração que não aceita mais ver os seus chicoteados, que foram e estão sendo ainda hoje, conduzidos a uma decisão que só leva a dois caminhos: o da luta ou da negação completa da realidade concreta. Nesse contexto, as grandes jornadas de junho de 2013 (que se estenderam até 2014) foram o momento de quebra de paradigma, do fim das ilusões e podemos sentir isso claramente lendo o livro. Tanto Navalha, quanto Flávia e Apê em suas infinitas diferenças, foram empurrados para aquele grito uníssono de um povo em completa rebelião contra seus senhores.

Chama atenção como o livro consegue desenvolver tão profundamente os seus personagens. A escrita na primeira pessoa cumpre o papel de nos colocar no chão das tramas, para sentirmos as dores, prazeres, dissabores e até mesmo raiva e reprovação sobre as atitudes dos personagens. A todo momento as dúvidas e inseguranças dos personagens são expostas durante a trama, que vai caminhando exatamente por entre tais elementos. É uma dinâmica absolutamente gostosa de ler e perceber.

Falar sobre os três protagonistas nessa resenha é quase que obrigatório. Dos três, Apê, é o que mais me provocou a refletir. Não porque me identifiquei com sua personalidade ou então sua história de vida, mas porque é um retrato que o livro faz de uma pessoa que tinha tudo pra continuar em seu mundo, do lado certo do túnel e nunca se importar com o lado errado, mas que em um momento de ebulição, foi empurrado para ver o mundo real e não virou as costas. Mesmo com suas contradições, foi-se modificando e percebendo que precisava mudar, se movimentar, se organizar. As leis das quais era tão crente, o tal Estado democrático de direito, não era mais do que um conto de fadas contado pelos engomados da "nacional de direito". Apê só consegue de fato perceber tudo isso, no momento em que o caveirão se pôs na Pres. Vargas. Aquele fato, é o que precisava para sua ficha cair e acredito que para muitos naqueles ido de junho também. Sua jornada é algo irritante, angustiante e fantástico de se acompanhar. 

Já Ventania, bom, ela é da América do Sul. Cowboy, do ouro, do mundo, de Vassouras. Flávia é uma jovem que não se rende, que mesmo passando por diversas dificuldades e até mesmo com a maternidade prematura, nunca virou as costas para seus sonhos, sua arte. Ela expressa uma juventude que se recusa a ser sepultada em sua essência, que não aceita de modo algum ser podada. Não importam as consequências, não será o redemoinho que se curvará às árvores, mas o contrário. A cena em que ela encara os PMs sozinha dotada apenas de um violão é empolgante, assim como toda sua luta por ser respeitada como artista e também para sobreviver no Rio de Janeiro. Foi incrível perceber como os protestos mostraram a ela que ela não precisava lutar sozinha, pois não estava, que existia todo um povo junto a ela nessa mesma batalha diária, que não era uma imprestável por ter 24 anos, não possuir um emprego e um filho para criar solteira. Magnífico!

Navalha é de fato o grande protagonista de Junho Febril. É difícil não colocar dessa forma logo na primeira linha do parágrafo, pois o ódio de Roberto Carlos é um ódio genuíno, um ódio profundo, um ódio que não é só dele, mas sim, um ódio profundo e secular, um ódio indescritivelmente justo. É impossível para qualquer pessoa que tenha crescido nas esquinas do subúrbio carioca, da baixada, da velha São Gonçalo, de toda periferia do Brasil, não se identificar com esse personagem. Todo seu desenvolvimento mostra o que de fato foram os protestos de 2013, um grande mar de pessoas com ódio a um sistema, aos porcos fascistas fardados, de togas e gravatas, que em algum momento perceberam que podiam rebelar-se, que rebelar-se é justo. Nesse contexto, as jornadas de Junho de 2013 foram o estopim para Navalha descobrir que é possível revidar, que há um caminho, que a "firma" não é o único jeito de marchar contra os porcos e tampouco que são eles os únicos alvos.

 A história de Navalha não é a história só dele, é a história de sua mãe, do seu irmão, do seu amigo Golpe. Essa história se confunde com a história do meu vizinho, de João Pedro, de Ágata, de Amarildo, de Flávia. Pessoas, com nomes e histórias, que desde o seu primeiro minuto de vida nasceram com um grande X vermelho em suas costas, por serem pobres, pretos, favelados. Pessoas que lutam, lutaram e vão lutar toda a vida contra todo um sistema que tenta de todas as formas amansá-las, matá-las. 

E é esse o grande acerto de Junho Febril, é um livro de muitas histórias que nos levam a tantas outras histórias e no final, a trama principal nem é o mais importante. É fantástico um evento tão importante para o país, como foram as jornadas de Junho de 2013, poder ser trazido para literatura através de uma obra tão fantástica e que consegue tocar em tantos aspectos do que representou aqueles protestos para a sociedade brasileira e principalmente para a juventude, das mais variadas origens. Uma grande obra. 


sexta-feira, 23 de junho de 2023

As Balas Salgadas

A primeira reação foi olhar para trás, mas não deveria tê-lo feito. O barulho do caveirão passando a segunda marcha só não foi maior do que o som dos tiros que me chamaram atenção no princípio. O desespero não tomou conta por completo, pois naqueles meus 10 anos de vida, situações não faltaram pra me preparar para aquele tipo de momento. 

Viver em São Gonçalo tem dessas coisas, cada estouro pode sim ser o fim da linha, o achar das balas salgadas.

No meio, entre homens de pés descalços e carros blindados com canos de 762 expostos, entrei debaixo do carro mais próximo, foi o que deu pra fazer. As balas voaram perto naquele dia, posso me lembrar das frases em que pronunciei em meio ao desespero, rezei pra deus: 

- Pai nosso que está no céu, santificado seja vosso nome, vem a nós em vosso reino, seja feita a sua vontade, aqui na terra quanto no céu

Podemos dizer que naquela tarde quis muito acreditar em Deus, qualquer um, naquele momento em que fechei os olhos e só o cheiro da gasolina estava dentro de meu cérebro, quis muito mesmo conseguir ter algum tipo de fé em algo onisciente, onipotente, para acabar com todo o mal. Se bem que ali, naquele momento, para quem mesmo eu estava torcendo contra? não lembro. 

Foram alguns minutos debaixo daquele carro, o sentimento de terror completo, não era maior que a raiva, que o nojo daquela situação. 

Quando levantei, fui correndo para casa, senti ainda um medo profundo de menino, só queria ter certeza que a minha avó estava bem. Abri o portão, abracei-a firme, as lágrimas foram inevitáveis: aquele não foi o dia das balas salgadas me alcançarem. 


São Gonçalo, 2023


sábado, 17 de junho de 2023

Morte!

 A dor contida em meu peito, é uma dor duradoura, é uma dor que tem história, origem e tradição. A dor contida em meu âmago já foi um grito de socorro, já foi um arrependimento profundo, já foi um mar de desilusões. A dor contida em meu coração, é uma dor reprimida, é uma dor raivosa, uma dor que queima e arde até ser liberada. A dor contida em meu estômago, é uma dor que exige vingança, uma dor que não aguenta mais, não aguenta mais ver os mesmos atores massacrarem e usurparem. A dor contida em meus punhos é uma dor difícil de ser contida, uma dor que estala, uma dor que instiga, uma dor que quer sair. 

Por isso estou declarando, do fundo da minha alma: Morte! Morte à dor! Morte à velha São Gonçalo, morte aos espoliadores, morte aos assassinos e seus lacaios, morte ao velho Estado! 


São Gonçalo, 2021


sexta-feira, 26 de maio de 2023

Confissões ao Sandman

 Estava aqui matando tempo, olhando para a Guanabara em uma manhã cinza, sentindo o cheiro fétido da porca cidade sorriso. Ocorreu-me que já fazem semanas que tento, mas não consigo escrever sobre o atual momento, as palavras tem assustado. O drama é algo muito próprio dos escritores, felizmente não sou escritor.

A ansiedade feroz, aquela que consome tudo, essa quando tem seus motivos, se instala e não deixa mais nada prosperar. 

Sonhar não é de todo ruim. Ainda mais quando o sonho é justo, quando podemos especular com o irreal. Porém sonhar com o impossível tem seu preço e não sei se consigo pagar. 


Tenho um sonho. Um que morpheus esculpiu de suas areias com uma imponência e ferocidade que me encanta. Um sonho belo como o nascer do sol no verão, como a vista da lagoa de Itaipu. 


Já faz anos que essas areias presenciam um vai e vem, idas e vindas, brigas e decisões erradas. Causa-me tristeza profunda ter sentido tantas vezes que faltava pouco, causa-me tristeza perceber que talvez esse sonho só não seja pra mim. Queria ter esperança que as coisas  pudessem ser diferentes, mas não tenho.


Tem dias que é insuportável, dias em que a ansiedade toma conta. Tenho uma queda pelo impossível e ela é somente um sonho em minha vida, um daqueles que nos derrubam lágrimas pela manhã, que nunca irão se tornar reais 


São Gonçalo, 2023




segunda-feira, 22 de maio de 2023

É Necessário a Vida!

É necessário viver!

Por um mundo diferente, 

por um futuro que exista 


É necessário viver!

Aqui e agora,

não há outra vida,

nem outro mundo,

fugir da realidade é impossível 


É necessário viver!

Até mesmo as lágrimas,

as derrotas e frustrações

O nosso povo nunca abaixa a cabeça,

por que deveríamos?


É necessário viver!

Pois viver é lutar,

e a vida só tem sentido na luta

Podemos mover montanhas,

somente com nossos punhos 


É necessário viver!

Mesmo quando temos que dizer adeus

As partidas doem,

mas é necessário viver 

É assim que honramos a memória,

dos que agora só vivem em nossos corações


É necessário viver! 

Até quando precisamos encarar a morte,

sem ressentimentos ou remorso,

pois a morte também faz parte de viver


É necessário viver!

Por um mundo diferente,

por uma alvorada luminosa,

para que os próximos continuem vivendo


Niterói, 2023



domingo, 14 de maio de 2023

A Escuridão dos Bons Momentos

 A verdade é que tentei muitas vezes, mas não consegui escrever nem sequer um verso no dia de hoje. Estou naqueles dias que tenho tanto para dizer, porém poucas palavras conseguem escapar de meus dedos para exemplificar, para me explicar, para falar dessa ansiedade profunda que tanto tem me consumido. Esses são dias complicados pois é impossível ignorar.

Tenho tanto medo dos versos, principalmente aqueles que estão mais escondidos dentro de minha mente, os que tanto insistem em me maltratar. São tantas coisas para pensar, escrever: Para onde estou indo? Eu mereço estar passando por isso? O que será de mim na semana que vem? Alguém se importa comigo? 

É difícil querer ser feliz, é difícil não se desesperar frente aqueles momentos em que tudo parece estar onde deveria estar, pois normalmente o preço cobrado depois é demais para o estômago suportar. Os dias tem acontecido com tantos pontos altos, com vários momentos realmente notáveis. Tem gerado tantas dúvidas, tantas incertezas, que realmente não sei se quero desvendar.

Tenho medo da tempestade que se avizinha, dos trovões, dos raios e dos bichos papões que tanto insistem em me aterrorizar.

São Gonçalo, 2023


 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Amar é Simples

 O tempo não se compra, nem mesmo pode ser ignorado, algumas coisas resistem mesmo a terremotos. A intimidade em alguns casos é tão natural. Tão natural quanto a química que emana sem método científico, sem planejamento.

Amar é tão simples. Você olha para alguém e ama, conversa e ama, convive e tem certeza. Os dias passam, meses, anos: você olha e ama, conversa e ama, convive e tem certeza.

A velha sociedade tem uma capacidade tão grande de destruição, que até o amor é destruído, pervertido, transformado em uma mera futilidade, uma boçalidade utilitarista. As pequenas grandes coisas nunca entram na equação, as relações são subvalorizadas, os padrões são os pavões e bichos papões. 

As lágrimas são inevitáveis e tenho medo do escuro, durmo sozinho todas as noites. Depois de uma caminhada tão longa até aqui, o que fazer? Acho que os bichos papões nunca serão superados, parece que nunca farei parte da equação. Mas o tempo não se compra, nem pode ser ignorado. A intimidade, a química: algo natural. 

O amor é simples. Você olha e ama, conversa e ama, convive e tem certeza. 

São Gonçalo, 2023


domingo, 5 de março de 2023

A Penetra


Hoje as lágrimas escaparam

Quando me dei conta,

meu rosto já estava todo molhado


A quietude ensurdecedora da solidão,

aquela que corrói,

que machuca

Tão silenciosa, 

chega mansa,

massacra de forma implacável

Insiste tanto em ficar,

me dilacera todos os dias


As Lágrimas nada mudam, 

amanhã preciso levantar 


A nostalgia altera tantas coisas

O ontem é confortável pois já passou,

ainda estamos vivos

Vivos!


Precisamos caminhar 


São Gonçalo, 2022

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Aqueles Dias em que o Mundo Foi Nosso

Está ventando do outro lado da janela,

Não queremos ir embora

Porque aqui dentro tem um café,

e uma vista boa para a varanda

Subindo e descendo,

agora toca aquela musica

aquela das nossas madrugadas,

onde só a lua podia nos parar


Cruzando trilhos,

tínhamos mesmo só 15 anos

Sem hora para ir embora,

mesmo ventando do outro lado,

estávamos em nosso lar

Havia música e um pouco de amor

Perdidos e em sintonia:

Gritamos,

Festejamos,

e o mundo foi nosso


- São Gonçalo, 2019

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Melancolia Marginal

 No primeiro momento é uma pontada forte, que vai se transformando em uma câimbra que repuxa, terminando num espasmo tão forte que paralisa completamente tudo. É uma dor tão forte, que às vezes não há o que fazer além de sentir, derrubando algumas lágrimas no processo. É algo inevitável, é o pedágio da idade. 

Esse mundo, esse velho mundo, esse velho Brasil, esse velho Rio de Janeiro, essa velha São Gonçalo, nos apunhala. Vivemos sob as ruínas de uma sociedade doente, sob a miséria de um Estado falido. 

A dor no peito, as lágrimas, o vazio sepulcral que tantas vezes se instala, a solidão inevitável de um marginal, são meras consequências. Amanhã tudo começa novamente, e é preciso estar de pé, pois os cupins comeram todos os pés da cama. 

São Gonçalo, 2023


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Domingo de Sol no Rio de Janeiro

 O caminho até a praia pode até ser tortuoso, mas nada impede o povo num domingo de sol no Rio de Janeiro. Nem mesmo um ônibus entupido de gente, ou a distância, pois tudo se resolve com um cooler cheio de gelo e um pagode na caixinha de som. Tanto faz o ônibus quebrar, uma hora vamos chegar, o céu azul é para todos. Cervejinha gelada, churrasco na grelha sob a areia e a água gelada do mar, esse é o espírito do Rio. 


Não sou tão chegado ao calor, mas nem preciso ser para sentir a felicidade que exala para todo lado quando o sol aparece num dia como esse, é só olhar em volta. Parece até, que pelo menos por um dia, não estamos mais em guerra, que por um dia, todo o conflito acabou. Pena que o domingo só tem 24h. 


Viver no Rio é viver em guerra. Contra a polícia assassina, contra o tráfico, contra todo o caos urbano. É uma guerra ininterrupta contra o velho Estado, que tanto mata e extorque o nosso povo, todos os dias. É preciso ter muita fibra pra não se deixar abater e o carioca não desiste, não deixa o sorriso do rosto sumir e mantém a esperança na luta. 


Entre as balas perdidas e achadas, entre todas as dificuldades que cada vez aumentam mais, o Rio de Janeiro é do povo que o constrói e resiste todos os dias e vai continuar sendo. 


Rio de Janeiro, 2023 



domingo, 8 de janeiro de 2023

Chuva de Janeiro

 Arriscar uma frase enfática apavora, mas não mais do que uma semana de chuva em janeiro. A eloquência de um início de ano pode nos levar a lugares nunca antes vistos, terrenos nunca antes explorados, até mesmo àqueles dias ensolarados. 


Mesmo o sol tendo nos abandonado, já é janeiro e o cheiro que vem desse recém chegado ano é de novidade, de grandes desafios, dos dias que vão entrar para a História. 


O cheiro de pólvora no ar não é por acaso, o Cruzeiro do Sul já está apontado para o Norte e o vento vem batendo forte nas palmeiras. Nada será como antes. 


  • São Gonçalo, 2023